Raimunda Duarte
O autor e teatrólogo piauiense Francisco Pereira da Silva (1930-85)
,talvez não pudesse imaginar sua obra no futuro sendo tão magistralmente esculpida
pela atriz-monstro (explico-me depois) Regina Duarte, carinhosamente conhecida
como ‘a namoradinha do Brasil’. Mas , se ele visse o que eu vi ontem no teatro
ali da sexta fila do gargarejo, como vi, teria ,certamente,se enchido de
orgulho até as tampas e aplaudido de pé.Ao comemorar seus 50 invejáveis/brilhantes anos de carreira, La Duarte dá
vida à história de Francisco.Mas dá vida mesmo, não simplesmente representa
Raimunda.
Raimunda /Raimunda (assim mesmo, duas vezes) nos revela a MULHER em sua
complexidade,a mulher do futuro (primeiro ato) e a mulher do passado (segundo
ato),fundindo-se numa versão legítima do feminino que lança sempre as perguntas
que o definem :o que quer uma
mulher ? O que é uma mulher ?
Em tom de farsa tragicômica (e não é essa a nossa trajetória ?) , Regina
nos traz uma Raimunda fogosa, desejante, cheia de sonhos na cabeça e ardores no
corpo.Lábios leporinos, voz fanha e uma vida de miséria marcam no corpo e na
alma a falta . E o que ela faz com isso é o que vai nos levando pelas estradas
em que caminhou, as boléias de caminhão em que se pendurou, a busca pela
carreira de enfermeira, a luta para melhorar sua aparência,os casamentos, os
abusos que sofreu , as danças que dançou, os excessos que cometeu, o
desassossego que a acompanhou e que no final, a leva de volta pra casa,
sozinha. Vivendo sua castração em todos os verbos e vestindo o misterioso véu
do feminino. Raimunda fala de nós
pra nós. Tocou fundo no meu fundo.
Mas eu como artista, criança,mulher, sujeita , apaixonada que sou por
Regina ('since' Malu Mulher,sim eu já tinha nascido), não molhei o rosto só por
Raimunda ,Raimunda. Foi Regina (que significa Rainha, também no nome daquela
que me gerou) quem me fez aplaudir de pé. Regina, essa menina,a filha do militar
com a pianista, foi ela em sua melhor forma aos 66 degraus de vida. Ela, que
não sai de cena (a não ser para trocas urgentes de figurino) dançou,pulou, rolou no chão, correu pra lá e pra
cá representando presente,passado e futuro em quase duas horas de peça, visivelmente,sem
se cansar.Preparada,dirigiu e encenou ,nitidamente dando o seu melhor para o
público ,ali hipnotizado por ela.Me arrepiou, me inspirou , me encheu de
esperanças , me fez pensar que a vida vale à pena, me fez gargalhar e
chorar.Repeti, baixinho com ela ,a frase que repete ao palhaço tantas vezes :
“Enxuga minhas lágrimas com seu lencinho de mil cores?".
Regina é mesmo
dessas mulheres que não saem de cena. NUNCA SAIU.
Depois de ver no palco,nos últimos meses da minha estrada, Caetanos,
Bethânias, Babys ,Fábios, e Regina, pensei ao final do segundo ato : QUE
ORGULHO DESSA GENTE TÃO JOVEM, QUE ORGULHO, MEU DEUS !
E agora me explicando quanto a chamá-la de MONSTRO :é porque
Monstro é o nome dado genericamente a um ser fantástico ou criatura lendária, de aspecto e
atos aterrorizantes. Ela é terrível
mesmo, como toda mulher que se preze deve ser
.
Mirelle Araújo (artista e psicanalista)
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